“POSSUIR A BOMBA” – REPENSAR O PODER EM UM CONTEXTO DE VULNERABILIDADE NUCLEAR GLOBAL
“Possuir a bomba” – repensar o poder em um contexto de vulnerabilidade nuclear global
Por Benoit PELOPIDAS
Como citar este artigo
Tradução do artigo: "« Avoir la bombe » - Repenser la puissance dans un contexte de vulnérabilité nucléaire globale",CERISCOPE Puissance, 2013, disponível no endereço: http://ceriscope.sciences-po.fr/puissance/content/part1/avoir-la-bombe-repenser-la-puissance-dans-un-contexte-de-vulnerabilite-nucleaire-globale
Este artigo é dedicado à memória de Bastien Irondelle
“A bomba”, é a “arma absoluta”. Logo, parece evidente que sua posse outorga poder. Exploremos mais à frente essa ideia enganosa que se apresenta como uma dialética do ser e do ter: adquirindo um objeto, um ator supostamente mudaria sua natureza, ou quase isso. Qual é então esse objeto que outorga o poder? De qual poder se trata? Esta afirmação está também espantosamente desprovida de contexto: seria essa uma verdade distintiva da era nuclear? Ela se aplica somente aos Estados?
Para responder a essas perguntas e explorar a relação entre o poder e a posse “da bomba”, é necessário primeiramente se debruçar sobre esse sistema de armas que evoluiu consideravelmente ao longo dos últimos sessenta anos a fim de identificar o que poderia justificar sua redução ao nome “a bomba”. A partir de então poderemos estabelecer o que esse sistema de armas pode conferir a quem afirma possuí-lo. Por fim, concluiremos que a existência de sistemas de armas nucleares, e mais ainda, termonucleares acoplados a mísseis balísticos contra os quais não se vislumbra nenhuma defesa crível, muda consideravelmente a definição de poder. Assim, a posse de tais armas funciona como uma afirmação de poder que coloca um risco irredutível de acidente e de escalada rumo à guerra nuclear. A ilusão do controle mascara uma realidade muito mais fundamental: os Estados não possuem a bomba; desde a invenção dessa combinação, a humanidade está à sua sombra e lançada aos dados. Para que alguns países se sintam poderosos, milhões de indivíduos estão vulneráveis. Repensar o poder na era nuclear exige encarar essa vulnerabilidade.
A bomba? Qual bomba?
“A bomba” é comumente identificada como a “arma absoluta”, o que parece justificar o uso do singular, ignorando as evoluções tecnológicas das últimas sete décadas. No entanto, nem esta denominação nem a denominação de arma de destruição em massa fazem jus à especificidade das armas nucleares. Estas têm acoplado a si um explosivo particular, que destrói tanto a vida quanto os seres inanimados extremamente rápido e causa danos duráveis, até os mísseis contra os quais não existe nenhuma proteção confiável. Este acoplamento é uma realidade desde o início dos anos 1960.
Os sistemas de armas nucleares não são a arma absoluta ou uma “arma de destruição em massa”, nem mesmo a mais destruidora de todas. A amplitude da destruição que eles podem causar parece intuitivamente distinguí-los de outras armas habitualmente classificadas nessa categoria, sejam elas químicas, biológicas ou radiológicas. Esta intuição é enganosa, por duas razões. Por um lado, a ideia de que a capacidade de destruição dos arsenais nucleares é por definição superior àquela dos sistemas denominados convencionais foi invalidada pela evolução tecnológica. Assim, a menor das armas nucleares tem uma capacidade de destruição inferior à mais destrutuva das armas convencionais contemporâneas. Comparamos aqui o canhão M-29 Davy Crockett, fabricado em 1956, portador de uma carga nuclear cuja capacidade de destruição equivale à de dez toneladas de TNT, à GBU-43/B, a “mãe de todas as bombas” (Mother of all the Bombs ou MOAB), utilizada pela primeira vez em 2003, cuja capacidade de destruição equivale à de onze toneladas de TNT. Por outro lado, uma noite de bombardeio a Tókio em agosto de 1945 fez 100.000 mortos, mais que o número de vítimas de Hiroshima (Enemark 2011). No fundo, um indivíduo determinado pode matar o conjunto de seus pares desde que tenha a oportunidade e que lhe seja dado o tempo. Precisamos então definir mais precisamente o que caracteriza “a bomba”.
Os explosivos nucleares destroem tanto a vida quanto os objetos inanimados (à diferença das armas biológicas, químicas e radiológicas), geram radiações que persistem e, talvez o mais importante, engendram destruição de uma amplitude excepcional em um tempo recorde. A velocidade de destruição tem implicações profundas sobre a capacidade de limitar os danos de uma explosão nuclear e de impedir a escalada em direção a uma guerra nuclear, em oposição a todas outras formas de catástrofe que se desenrolariam mais lentamente.
Convém igualmente levar em conta a evolução tecnológica: “a bomba” não é um explosivo único; ela designa sistemas tecnológicos compostos de um explosivo acoplado a um vetor capaz de conduzi-lo até seu alvo. Os dois componentes evoluíram consideravelmente desde 1945, ainda que em ritmos diferentes. Por exemplo, a passagem dos explosivos atômicos aos explosivos termonucleares se traduziu pelo potencial aumento em 1.000 vezes ao equivalente em TNT, depois esses esforços no sentido do aumento indefinido da capacidade de destruição de uma única bomba cessaram com o progresso da precisão dos vetores, de forma que a maioria das armas nucleares que existem hoje têm uma capacidade de destruição abaixo do que sugere a sempre invocada multiplicação por 1.000.
No que concerne aos vetores, precisamente, os mísseis balísticos intercontinentais entraram em uso no fim dos anos 1950 nos Estados Unidos e no fim dos anos 1960 na União Soviética (Le Guelte 2009) e modificaram as relações entre armamento nuclear e poder. As evoluções tecnológicas posteriores são marginais para o nosso propósito, à medida em que a invenção dos mísseis balísticos lançados de submarinos impossíveis de serem localizados tornou impossível a proteção contra um ataque nuclear (Gallois 2009 [1960]).
Esta incapacidade de se proteger de um ataque nuclear pode ser estabelecida em três níveis. Hoje, é impossível evacuar ou proteger as populações que seriam afetadas por esses ataques; destruir um submarino lançador de um dispositivo antes que o míssil seja lançado; ou ainda de interceptar um míssil balístico intercontinental em vôo. Essa tripla impossibilidade confirma a vulnerabilidade diante da ameaça nuclear. Retomemos esses três aspectos de maneira mais sistemática.
A velocidade com que se deslocam os mísseis balísticos torna irrealista todo procedimento de evacuação ou de deslocamento das populações. Os planos de evacuação elaborados pela agência federal americana de gestão de urgências nos anos 1980 (Federal Emergency Management Agency. FEMA) supunham que o país visado fosse advertido muitos dias antes do ataque: sua eficácia exige um inimigo muito atencioso que além disso não lance uma segunda ofensiva sobre as populações deslocadas (Clarke 1999). Os abrigos subterrâneos tampouco constituem uma proteção eficaz contra um ataque nuclear. Apesar dos planos e investimentos realizados, por exemplo, nos Estados Unidos e na Suíça para construir abrigos anti-atômicos que, no segundo caso são destinados a abrigar a totalidade da população do país (para uma comparação, ver Dyson, 1984), atualmente é evidente que a proteção supostamente oferecida por tais abrigos não é mais que uma ilusão e denota promessas insustentáveis (Clarke 1999; Garisson 2006). Sendo necessariamente limitada a quantidade de provisões passíveis de se armazenar em tais abrigos, os sobreviventes deverão refazer os estoques mais cedo ou mais tarde, se expondo assim a novos ataques e a um ambiente provavelmente radioativo. A intensidade dessa radiação depende das hipóteses estabelecidas sobre a guerra nuclear, as recentes pesquisas sugerindo que a explosão de cinquenta bombas com poder igual às de Hiroshima projetariam fumaça na atmosfera suficiente para obstruir uma quantidade considerável de raios de sol, o que teria por consequência escurecer e esfriar consideravelmente o planeta durante um período de pelo menos dez anos (para um resumo dessas pesquisas, ver Robock e Toon 2011; para uma história detalhada dos debates sobre este assunto desde os anos 1980, ver Badash 2009). Esse “inverno nuclear” atingiria a agricultura mundial e desencadearia fome em grande escala. Enfim, mesmo se a pesquisa recente sobre o inverno nuclear se comprovasse alarmista, a bola de fogo liberada pela explosão atômica, cujos efeitos foram sistematicamente minimizados nos planos de guerra americanos (Eden 2004), seria suscetível de transformar os abrigos em crematórios.
Uma vez estabelecido que a proteção contra a explosão nuclear propriamente dita é impossível ou garantiria na melhor das hipóteses a sobrevida de um número limitado de pessoas em condições difíceis, por que não é possível destruir o submarino lançador de mísseis? Se o submarino em questão está submerso seria de se supor que fosse resolvido o problema da opacidade dos oceanos, que até o presente tornou os submarinos indetectáveis. Todavia, mesmo no cenário mais otimista, que considere que esse problema possa ser resolvido ou que a transmissão da ordem de lançamento ao submarino possa ser impedida, o sucesso de tal operação exige que se possa identificar o submarino em questão e atingí-lo antes que ele proceda ao lançamento. É por isso que os projetos atuais consistem em desenvolver drones capazes de seguir os submarinos e de destruir os mísseis durante sua fase de lançamento. Se se considera um possível erro na identificação do referido submarino o objetivo então passa a ser o de destruir todas as capacidades de reação nuclear do inimigo antes que ele as utilize. Tal objetivo requer uma capacidade prévia de ataque que privaria o adversário de todo seu arsenal nuclear. Em outras palavras, destruir um submarino lançador de mísseis balísticos antes que ele proceda ao lançamento constitui um desafio tecnológico em termos de detecção ou de interceptação e repousa sobre a possibilidade de ataques preventivos nucleares e sobre a construção de um arsenal incompatível com as exigências da dissuasão que os Estados possuidores de armas nucleares apresentam até o momento como a alavanca de seu poder. No estado atual da tecnologia, a destruição do submarino capaz de lançar um míssil nuclear de ponta não é, portanto, mais possível do que a proteção das populações por meio da evacuação ou da construção de abrigos.
Enfim, por que a interceptação de um míssil em vôo antes que ele atinja seu alvo não é possível? Os 279 milhões de dólares investidos pelos Estados Unidos desde os anos 1960 (Schwartz 2012) com vistas à produção de defesa antimíssil não deram resultados conclusivos. Com efeito, os mísseis balísticos são muito difíceis de interceptar depois de sua fase de lançamento durante a qual eles produzem uma pista térmica identificável; ademais, a arquitetura defensiva dispõe de um número limitado de mísseis que, supondo que sejam capazes de interceptar em vôo e de destruir um projétil que se desloca numa velocidade muito grande, podem ser desviados de seu alvo por iscas enviadas antes do ataque real (Postol e Lewis 2011). A dificuldade de tal projeto é reforçada ainda nos anos 1970 com o desenvolvimento de mísseis de múltiplos alvos (Multiple Independently Targetable Reentry Vehicles, MIRV) capazes de mirar alvos distintos. Assim, os progressos anunciados pela Missile Defense Agency são discutíveis e podem no máximo aumentar a probabilidade de sucesso da interceptação. Tal probabilidade está longe de ser uma certeza e não elimina, portanto, a vulnerabilidade inaugurada pela combinação de armas termonucleares, mísseis balísticos intercontinentais e submarinos capazes de lançá-los.
A mudança da política declaratória em matéria de emprego de armas nucleares, que levou a não mais direcionar exclusivamente ou explicitamente aos centros populacionais, mas sobretudo aos “centros de poder”, segundo o vocabulário francês oficial, ou os “ativos mais valorizados aos olhos do adversário” (assets most valued by the adversary) não protege as populações das consequências de um ataque nuclear. De fato, as doutrinas nucleares em vigor demonstram uma determinação de causar “danos inaceitáveis” ao adversário. Mesmo que as políticas de segmentação nuclear sejam rigorosamente aplicadas em caso de guerra, a mudança de política declaratória modifica apenas o grau da vulnerabilidade, mas não sua natureza existencial.
No fundo, os sistemas de armas nucleares não são “a arma absoluta” ou uma “arma de destruição em massa”. O que as distingue desde os anos 1960, é o acoplamento de um explosivo particular, que destrói a vida e os objetos inanimados muito rapidamente e causa danos duradouros, aos mísseis balísticos intercontinentais contra os quais não existe nenhuma proteção confiável. O poder militar dos Estados Unidos e da União Soviética durante a guerra fria em nada lhes remediou a vulnerabilidade fundamental (Jervis 1989). Pensar o poder em um mundo onde as armas nucleares existem, é, a princípio, reconhecer esta vulnerabilidade.
Qual poder?
Os sistemas de armas nucleares não são a arma absoluta no sentido de que ela seria um objeto único que atravessou imutável o tempo. Eles não são tampouco a arma absoluta no sentido de que concederiam um poder ilimitado ou garantiriam o sucesso de todas empreitadas aos seus detentores. Tendo em vista o que afirmamos, eles concedem certamente um poder de destruição contra o qual nenhuma defesa é possível. É por isso que o programa de mísseis da Coreia do Norte provoca pelo menos tanta preocupação quanto seu programa nuclear propriamente dito. Sem vetores eficazes ou com vetores vulneráveis, a ameaça posta seria bem menor. Mas nenhum dos Estados atualmente dotados de armas nucleares insiste sobre esta capacidade de destruição. Eles a apresentam como um instrumento a serviço de uma estratégia de dissuasão ou de influência, que faz dos arsenais nucleares a garantia última da segurança e, por vezes, da independência nacionais. Tal concepção de poder é relacional: os arsenais nucleares são supostamente uma forma de permitir aos Estados imporem suas vontades a outrem, ou em todo caso de atingir seus fins. No entanto, o poder que eles conferem não é uma condição necessária nem suficiente para despontar na cena internacional. Como instrumentos de coerção, eles não são mais eficazes do que os arsenais convencionais, e como instrumentos de dissuasão, eles são imperfeitos e encorajam estratégias arriscadas. Mais profundamente, a afirmação de poder à qual estão sujeitos no discurso político contemporâneo dos Estados detentores ignora a vulnerabilidade fundamental a que nos referimos.
Não necessariamente o acesso ao status de grande potência
De início, a aquisição de um sistema de armas nucleares não é uma condição necessária nem suficiente à emergência como potência na cena internacional (Pelopidas 2012).
Além do caráter problemático da noção de emergência que reflete a compreensão do poder daqueles que estão em posição dominante em um dado tempo e espaço, é forçoso constatar que a nuclearização da Coreia do Norte ou do Paquistão em nada lhes concedeu um reconhecimento como potência emergente. Inversamente, o declínio relativo dos Estados Unidos, da Rússia, da França e do Reino Unido não foi retardado pela posse de um arsenal nuclear, particularmente no caso russo. É necessário aqui dissipar a ilusão retrospectiva segundo a qual os membros permanentes do Conselho de Segurança o são porque possuem um sistema de armas nucleares. Nenhum Estado era detentor quando a composição do Conselho foi estabelecida pelo artigo 23 da carta das Nações unidas: ela foi adotada em 26 de junho de 1945, vinte dias antes do primeiro teste nuclear da história. Ao contrário, o Japão e a Alemanha emergiram como potência no pós guerra fria em um contexto de crise financeira adotanto uma política de desenvolvimento fundada na opção pela renúncia a um sistema de armas nucleares (a respeito da renúncia como política, ver Pelopidas, no prelo). A Coreia do Sul, a África do Sul e o Brasil são outros exemplos de Estados cuja política de emergência é fundada sobre a renúncia a um sistema de armas nucleares.
A ideia de que a India e a China são potências de amanhã, notadamente porque são detentoras de armas nucleares, comporta pelo menos três objeções. A certeza dos comentaristas que lidam com esse tema não é menor que a dos profetas do século XXI japonês até que a crise asiática dos anos 1990 os reduziu ao silêncio. Os desafios consideráveis que as duas nações têm de enfrentar nos planos econômicos, religioso mas também em termos de coesão nacional, associados ao imprevisto e ao imprevisível, convidam à prudência. Além disso, a India não acedeu ao status de membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, contrariamente ao que ela esperava ao proceder aos testes nucleares em maio de 1988. Não somente o reconhecimento de sua emergência à cena internacional foi recusada, mas a campanha de testes indianos precipitou a de seu rival paquistanês duas semanas mais tarde, e a nuclearização da região tornou-se um fator de insegurança.
Nenhum poder coercitivo superior ao de um arsenal convencional
Desde o início da era nuclear, a diplomacia americana é guiada pela convicção de que a posse de armas nucleares outorga aos Estados Unidos uma capacidade de negociação que irá ajudá-los definitivamente a triunfar em uma situação de crise diante de um Estado não possuidor. Esta convicção se manifesta em particular entre os presidentes Truman, Eisenhower e George W. Bush (Sechser e Fuhrmann 2013). Para alguns, esta vantagem vale mesmo na ausência de ameaça nuclear explícita. A simples possibilidade do confronto levar ao uso de tal arma já seria suficiente para dobrar o adversário à vontade do Estado detentor de armas nucleares. Esse raciocínio parte do princípio de que este último pode elevar a tensão impunemente até que o adversário ceda, precisamente ao fato da posse exclusiva de armas nucleares. A distinção entre essas últimas e as armas convencionais é então radicalizada, sugerindo que os sistemas de armas nucleares oferecem uma capacidade de coerção desproporcional: quem afirmaria que a posse de um arsenal convencional tem um efeito dissuasivo sobre o adversário na ausência de ameaça proferida? Essa convicção, no entanto, não é corroborada pelos estudos históricos: os sucessos da diplomacia nuclear são mais que limitados (Bundy 1984; Halperin 1987). Mais precisamente, um arsenal nuclear não concede de fato mais vantagem em termos de poder coercitivo do que um arsenal convencional em situação de crise (Sechser e Fuhrmann 2013).
Ver a ilustração de Tom Cheney
O poder negativo pela dissuasão nuclear: condições e limites
A maioria dos Estados possuidores de armas nucleares apresentam seus arsenais como a garantia última da segurança de suas nações. No mesmo movimento, eles afirmam que o poder que elas lhes conferem reside na sua capacidade dissuasiva. Ora, aqui não se trata mais de poder no sentido de capacidade de ação aumentada, mas sobretudo de proteção, ou mesmo de sobrevivência. O tipo de poder que reivindicam os partidários da dissuasão nuclear é, portanto, um poder negativo: uma capacidade de impedir o outro de violar os interesses vitais da comunidade que exibe um arsenal nuclear. Convém então expor os limites da proteção oferecida pelas armas nucleares no quadro desse poder negativo, mas também de afirmar que ela coloca o Estado detentor de armas nucleares em uma busca perpétua de credibilidade e incita seus dirigentes a ocultar a vulnerabilidade fundamental que expusemos antes.
Primeiramente, os efeitos protetores da dissuasão nuclear apresentam vários limites intrínsecos: ela não protegeu os Estados possuidores contra os ataques de proveniências diversas. Assim, os Estados Unidos foram confrontados com ataques de tropas chinesas na Coreia em 1950 e na guerrilha norte vietnamita nos anos 1960 e 1970; Israel foi atacado pela Síria e Egito em 1973, depois pelo Iraque em 1991 (envio dos mísseis Scud B); o Reino Unido foi atacado pela Argentina que invadiu as Ilhas Malvinas em 1982 (Paul 2009). Todos esses casos ilustram a possibilidade de ataques feitos por Estados não possuidores a Estados possuidores. Da mesma forma, os ataques sofridos por Israel deveriam descartar a objeção frequente segundo a qual a dissuasão nuclear conserva sua virtude santuarizante em face dos interesses vitais de uma comunidade e de seu território. Dois casos de guerras limitadas entre Estados nucleares igualmente convidam a revisar para baixo a virtude protetora da dissuasão nuclear: um conflito fronteiriço opôs a China e a União Soviética em 1969 (Holloway 2010); depois o Paquistão e a India se confrontaram no momento da chamada crise de Kargil em 1999 (Hoyt 2009) que causou um pouco menos de mil mortos e que os analistas ocultam às vezes, precisamente devido ao fato de que abaixo da barreira numérica de 1.000 mortos por ano os conflitos armados não são considerados como guerras por numerosos politólogos (ver o estudo seminal de Singer e Small 1972). Parece então impossível ver na posse de armas nucleares a garantia de santuarização de um território, que poderia colocá-lo ao abrigo de ataques conduzidos por Estados possuidores ou não possuidores de armas nucleares. O efeito específico do acoplamento de armas termonucleares aos mísseis intercontinentais e submarinos consiste precisamente em tornar obsoleta a soberania do Estado territorial entendida como capacidade de garantir a segurança de uma comunidade por meios militares (Deudney 1995).
Então, a eficácia de uma estratégia de dissuasão nuclear exige que se estabeleça e se mantenha a credibilidade da reação nuclear, o que constitui um desafio considerável e leva a se expor à vulnerabilidade evocada acima, sem a reconhecê-la plenamente. Efetivamente, a capacidade de destruição dessas armas contribui para seu efeito dissuasivo, mas ela não é suficiente. Pelo fato de que as armas nucleares causam estragos desproporcionais contra os quais não é possível se proteger, o adversário refletirá duas vezes antes de arriscar tal reação. Mas há uma condição para a validade deste raciocínio: é preciso que o adversário creia na possibilidade da reação nuclear que constitui a base da mencionada ameaça dissuasiva. Quaisquer que sejam as capacidades de que dispõe o Estado detentor de armas nucleares, uma vez que o inimigo não acredite mais na possibilidade de uma reação nuclear, todo o efeito dissuasivo se esvai. Nesse sentido, a capacidade de destruição dos sistemas de armas nucleares que incita o adversário a fazer tudo para não sofrê-la, confronta ao mesmo tempo a ameaça dissuasória a um déficit crônico de credibilidade. Consciente dos efeitos do uso desse tipo de armas, qual dirigente político tomaria para si esta responsabilidade?
Enfim, essa busca permanente de credibilidade à qual o dirigente de um Estado nuclear é forçado vai incitá-lo a expor sua população a um ataque ao afirmar uma fé desproporcional em um resultado positivo da crise. Dessa forma, o Estado possuidor de armas nucleares se torna, pelo fato mesmo de possui-las, um alvo de represálias do lado oposto em uma situação de dissuasão: no caso de uma escalada além do limiar nuclear, o adversário se esforçará em limitar os danos aos quais está exposto destruindo tanto quanto possível as capacidades nucleares do outro. À medida em que os Estados dotados de armas nucleares não se proibam categoricamente de alvejar os Estados não possuidores, e em razão das potenciais consequências globais da guerra nuclear, um Estado não possuidor não pode ter certeza de que sairá ileso, mas ele não se percebe como alvo prioritário, à diferença do Estado que se esforça em afirmar seu poder por meio das armas nucleares. A busca de credibilidade vai igualmente expor a população desse último pois seus dirigentes são incitados a se arriscar mais do que fariam se não dispusessem dessas armas. A lógica é a seguinte: uma situação de tensão extrema vai tornar menos improvável o uso da arma, e então mais crível a ameaça de represálias nucleares que deve incitar o inimigo a não tentar nada em primeiro lugar. A pressão crescente da administração Kennedy sobre Fidel Castro no período que precede a crise de Cuba (1962) ilustra esse fenômeno de escalada da tensão visando a tornar crível a ameaça (Lebow e Stein 1994). O terceiro componente deste esforço paradoxal e arriscado consiste em insistir sobre a possibilidade de que a situação escape a todo controle para resolver o problema do déficit crônico de credibilidade da ameaça de emprego de armas nucleares. Se um poder negativo é de fato conferido pelas armas nucleares, ele repousa sobre a aceitação de se correr um risco aumentado para tornar crível a ameaça de represálias, mas também sobre a convicção de que a possibilidade de um ataque nuclear na sequência de uma má percepção ou de um acidente, permitirá sempre e somente dissuadir o adversário e não se realizará jamais, enquanto as duas populações permanecem indefesas. Nesse sentido, a busca pelo poder negativo esperado por meio das armas nucleares convida a acentuar a vulnerabilidade da própria população se pondo à mercê de um acidente ou de uma má interpretação de suas intenções pelo adversário, ao conservar e ao comunicar às pessoas a íntima convicção de que isto não acontecerá e que o destino é apenas um instrumento que convém saber manipular bem (para exemplos de acidentes que impliquem armas nucleares e o papel do acaso no resultado favorável de tais episódios, ver Sagan 1993; Schlosser 2013).
O leitor cético sem dúvida objetará que se tantos Estados desejaram dotar-se de armas nucleares ao longo dos últimos setenta anos, isto ocorre forçosamente por uma boa razão, que tem a ver sem dúvida com a afirmação de poder. Essa perplexidade se dissipa assim que se reconhece que a busca de armas nucleares é uma estratégia rara e que não se explica somente pela falta de meios ou pela ausência de ameaça. Os estudos mais pessimistas consideram que apenas quarenta Estados tentaram, em um momento ou outro de sua história, se dotar de um sistema de armas incluindo um explosivo nuclear, e nem ataques preventivos ou outros choques nem a ausência de capacidade ou de guarda-chuva nuclear de segurança são suficientes para explicar esta constatação (Pelopidas 2009, no prelo). Somente uma memória seletiva da história nuclear conduziria a se lembrar dos casos de proliferação concluídos e a se esquecer ou negligenciar os casos muito mais numerosos de proliferação abandonada, ou nunca realmente iniciadas (Pelopidas 2010).
Conclusão
Repensar o poder em um contexto de vulnerabilidade nuclear global
Os sistemas de armas nucleares não são a arma absoluta reificada como “a bomba”, que supostamente tornaria poderoso ou garantiria o sucesso das empreitadas daquele que a detém. Bem ao contrário, este sistema tecnológico evoluiu consideravelmente ao ponto de esvaziar a denominação “a bomba” de qualquer sentido, visto que ela abrange realidades diferentes e desproporcionais. A acoplagem de bombas termonucleares aos mísseis intercontinentais lançados de submarinos a partir do início dos anos 1960 introduziu uma vulnerabilidade sem precedentes. Ela define uma condição globalmente partilhada uma vez que os Estados possuidores de armas nucleares não descartam a possibilidade de alvejar os Estados não possuidores – as doutrinas desses Estados, a ratificação limitada dos protocolos anexados aos tratados estabelecendo zonas isentas de armas nucleares e as demandas persistentes de garantias negativas de segurança da parte dos Estados não possuidores são sinais desse fato – e, mesmo se não se aceita a hipótese do inverno nuclear, os efeitos de uma explosão nuclear não acabam nas fronteiras.
Qualquer que seja a credibilidade que se atribua à ameaça representada por terroristas que possam se munir de um sistema de armas nucleares, ela não faz senão sublinhar esta vulnerabilidade, indevidamente reduzida a uma condição da segurança pelo discurso da dissuasão. Pensar o poder na era nuclear exige reconhecer e levar em conta esta vulnerabilidade.
A aquisição desses sistemas de armas concede uma capacidade destrutiva irrefreável mas ela não é uma condição necessária nem suficiente para o acesso ao status de grande potência. As armas nucleares não oferecem capacidades coercitivas incomparáveis e a dissuasão nuclear é apenas um instrumento frágil de poder negativo que repousa sobre e alimenta uma grande vulnerabilidade. Ela é evidentemente maior ainda para os Estados dotados de armas nucleares pois seus arsenais nucleares constituem opções de alvos se forem detectáveis. A doutrina da dissuasão põe esta vulnerabilidade a serviço da segurança comum graças a uma lógica de reciprocidade, mas ela finge ignorar que essa lógica repousa sobre a certeza de que as armas nucleares nunca serão usadas de maneira não autorizada ou na sequência de um erro de julgamento (Pelopidas 2013). Em caso contrário, o poder de um Estado nuclear seria reduzido a pouca coisa em menos de uma hora, que é o tempo que um míssil intercontinental precisa para atingir qualquer alvo no planeta.
Em tais condições, exceto se se adotar um providencialismo tecnológico estranho segundo o qual a defesa antimíssil progrediria mais rápido que os meios de se contorná-la e suficientemente para que o risco de fracasso da interceptação se torne aceitável, somente um fundamento nos parece suscetível de recobrar um sentido à ideia de que um Estado ou uma comunidade política pode ser poderosa na medida em que disponha de um sistema de armas nucleares: um ethos sacrificial que coloque outros objetivos acima da sobrevivência (de uma grande parte) da comunidade em questão. Tal abordagem aparece claramente no presidente Eisenhower que, em 1959, explicou ao embaixador britânico que ele “preferiria ser atomizado do que comunizado” (“the President said that speaking for himself, he would rather be atomized than communized”) (Chernus 2008) ou em De Gaulle, respondendo ao embaixador soviético Vinogradov que deixou pairar uma ameaça sobre a França no momento da crise de Berlim de outubro de 1958: “Bem, Senhor Embaixador, nós morreremos todos, mas você também” (Lacouture 2010 [1986]. Um ethos da disponibilidade ao sacrifício faz sentido para os soldados e para os comandantes em chefe Eisenhower e de De Gaulle. Mas convém também reconhecer que suas posições expunham muito provavelmente mais suas respectivas populações, de resto não necessariamente prontas a tal sacrifício. Além disso, esse ethos do sacrifício aparece muito facilmente como aquele de um combate singular, de face a face entre vontades, como se o sacrifício fosse resultado de um ato deliberado diante de um inimigo identificado. Não é este o caso: tal ethos coloca as populações à mercê da vontade de outro Estado nuclear – que decide atacar primeiro ou revidar em seguida ao que ele identifica como um ataque – mas também de um eventual acidente em seu próprio arsenal ou no do outro Estado detentor de armas nucleares. Este ethos exige por em perigo a vida da própria população mas também além de seu próprio Estado e de estar pronto para morrer por nada pelas mãos de um outro que nem nos odeia e que nós tampouco queremos mal – por exemplo, na entrevista reportada acima, De Gaulle encara assim a morte em uma confrontação americano-soviética na qual a França não desempenha um papel ativo – (sobre os efeitos da distância daquele que lança o míssil em relação à vítima e da estetização/virtualização das explosões nucleares sobre a possibilidade de seu emprego, ver Anders 2008; Masco 2004).
A “revolução nuclear” adquiriu todo seu sentido com o acoplamento de armas termonucleares e de mísseis balísticos lançados de submarinos. Desde então, somos prisioneiros de uma disponibilidade muito estranha ao sacrifício raramente reconhecida como tal e, para que alguns se sintam poderosos, é a humanidade que “tem a bomba” e lança os dados à beira do precipício.
Agradecimentos
Agradeço a Sonya Drobyzs, Yaël Hirsch, Georges Le Guelte, Nadine Locchi, Jonathan Pearl e Sébastien Phillippe por seus comentários aguçados sobre as versões anteriores deste texto, assim como aos avaliadores du CERISCOPE.
Artigo traduzido por Geisa Cunha Franco (professora do curso de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás)